A Terra não será salva por homens de boa vontade: o eterno retorno do mesmo

Na maioria dos círculos cristãos, principalmente os evangélicos, não é de bom tom, nem conveniente, tocar no enfoque escatológico urgente da mensagem de Jesus, mensagem que é um dever, uma obrigação determinada por Deus aos seus mensageiros, do primeiro livro da Bíblia hebraica ao último do Novo Testamento cristão, e que está intimamente vinculada a visão teológica que os Juízes e Profetas do Antigo Testamento tinham sobre Deus e sua justiça. Causa constrangimento, muita dificuldade e um certo terror, lidar com a ideia de que os Juízes e Profetas estão pregando não só para seus contemporâneos, mas também para pessoas de uma época que eles não têm noção de quando é. Esses incômodos vultos do passado trouxeram sérias profecias que têm cumprimento no tempo linear com data, local e personagens específicos envolvidos. Seria um alívio geral e todos poderíam dormir o sublime sono dos justos, descompromissados e sem nenhum remorso se a coisa parasse aí. 

Outra noção de tempo e cumprimento das sentenças e profecias não deixará ninguém  escapar às mínimas consequências de seus  atos, embora muitos líderes religiosos decidam não lidar com a mensagem do juízo e do fim que perpassa toda a Bíblia, e caso resolvam lidar, a negação, o rechaço e a relativização são boas saídas à si mesmos, para não espantar e correr o risco de ficar sem ovelhas no curral, que pagam o alto custo de suas tranquilas vidas de profissionais da fé.

Mestres e videntes antigos falaram de uma outra realidade de tempo que se desenrola dentro do tempo linear, a realidade de um tempo circular, onde tudo se repete, nada é novo, tudo volta a acontecer num eterno movimento, o eterno retorno do mesmo. No interior desse tempo os homens reproduzem os mesmos erros, tomam as mesmas decisões e sofrem as mesmas consequências que outros antes deles; fazem as mesmas guerras, espalham as mesmas doenças, são atacados pela mesma estupidez, orgulho, prepotência e manifestam a mesma dureza de coração. Salomão, o sábio rei existencialista da Bíblia hebraica falou desse movimento em seu ácido e cortante livro, O Kohelet: “O que foi é o que há de ser; e o que se fez, isso se tornará a fazer; nada há, pois, novo debaixo do sol” (Eclasiastes 1.9).

(Fora do circuito das Escrituras, Nietzsche, em poucos aforismos, e a série Dark, de maneira exaustiva e complicada, trabalharam a ideia, não meramente hipotética e fictícia, do eterno retorno do mesmo).

Tanto os Juízes, quanto os Profetas e o Cristo, foram veementes em seus sermões e provaram na pele através da sofrida experiência com os israelitas, que não havia nada novo debaixo do sol; absorvidos nesse loop, permaneciam causando os mesmos efeitos, e, portanto, as mesmas repreensões, vaticínios e consequências voltavam sobre eles num movimento cíclico, inquebrantável, perpétuo. De vez em quando, depois de uma solene convocação ao arrependimento, os israelitas davam sinais de quebrar o ciclo da repetição, renovavam os votos de fidelidade a aliança com Deus, lançavam fora seus ídolos de ouro, prata, cobre, pedra e pau, e restituiam a justiça. Mas, essa atitude de contrição só durava até a morte do Juíz, e assim que seu corpo tornava ao pó, voltavam a bajular seus seus falsos deuses, a praticar prostituição cultual, dançar e cantar para seus ídolos do clima, deuses agrícolas e deidades da fertilidade, chegando no cúmulo da idolatria cruel a queimar seus filhos em oferta a Moloch.

Na passagem da antiga para a nova aliança, o ciclo da repetição não foi interrompido, apesar dos esforços do Cristo em querer fazer Israel transcender sua melancólica rotina escravizadora. Presunçosos e apegados ao erro, deram ao Filho de Deus o mesmo destino que seus pais deram aos Profetas que ousaram tentar mudar seu coração endurecido.
Nada há, pois, novo debaixo do sol.

Dos Juízes e Profetas até o Cristo passaram-se aproximadamente 1.200 anos em tempo linear, do Cristo até a era dos homens pós-religiosos, quase 2.000 anos sobre a mesma linha, e a questão fundamental é: o que mudou nas atitudes da humanidade para melhor?

Passados esses milênios, os homens de mente demitizada, desde Freud, orgulhosos órfãos de um Pai lá em cima, ao mesmo tempo operadores e platéia da perversidade do fascismo, do nazismo, da grande bomba, do sionismo, que tiveram a existência com sua medíocre ou nenhuma fé exposta até as vísceras por Bergman, Tarkovsky, Angelopoulos, Yorgos Lanthimos, Lars von Trier, que concebeu a habitação humana como uma Dogville sem portas nem paredesonde os indivíduos trombam uns nos outros perdidos em futilidades, afundados em desejos sórdidos, enfadados nos afazeres do nada para o nada...esses homens progrediram em que?

Apesar da humanidade avançar grandemente em tecnologia, das diversões simples nos momentos de ócio, para o estonteante universo das distrações digitais 24 horas por dia, continua a tropeçar nas mesmas pedras que seus antigos parentes do mundo analógico. Se em algum sentido ela evoluiu foi na competência para o mal; de mísseis guiados por aplicativo de uma inexpugnável sala no Pentágono, capaz de estourar com precisão a cabeça de uma criança em qualquer ponto cego na Palestina, a vírus e bactérias em sachês de mostarda, deve-se reconhecer que a ruindade humana teve um avanço sem precedentes na história. O ser humano é muito eficaz e engenhoso quando quer roubar, matar e destruir, sobretudo, quem nasce com outra cor, em outra etnia, outra religião, outra economia.
Ele constrói seus muros da vergonha, cria inimigos e terroristas vorazes onde existem apenas crianças assustadas, mutiladas, morrendo de sede e fome, e as abate como se fossem feras propiciadas para um divertido safari, tudo sob a passiva observação da ONU, e a conivência e indiferença de grande parte do Ocidente "cristão".

Como espécie, em ética, moral e empatia, a humanidade não evoluiu em nada, e fez a troca dessas virtudes pelo domínio da técnica. E é o domínio da técnica que acharam, iria lhes  fornecer os materiais para construir com seus esforços, habilidade e imaginação um paraíso melhorado e alternativo ao mítico Éden bíblico para nele folgar sem Deus, devorando até as folhas da árvore do conhecimento sem nenhuma sequela.
São justamente os que estão sob esse domínio que aceleram, com o uso frenético, o processo de degradação da vida no mundo real, enquanto as
big techs vão colonizando suas mentes, aperfeiçoando taticamente o nível de prazeres e sensações para seus usuários, que, presos aos rolezinhos através da encantadora lupa de busca do mundo virtual, plano, luminoso, filtrado, são  convencidos de sua ilimitada oferta.
Os únicos paraísos que foram capazes de construir e neles performar, não passam de bolhas hedonistas individuais onde cada um se aliena em sua própria versão Black Mirror de deleites e falsas aparências.

A humanidade não evoluiu, ela não caminha rumo ao sumo bem, a Terra não será salva por homens de boa vontade.

A ideia de que a humanidade irá construir um mundo melhor, de que sua potência para o bem ao final irá sobressair, que vão enfeitar o salão, preparar o bolo e só chamar Jesus pra festa em louvor aos seus próprios esforços - se é que alguém pensa em convidá-lo -, é uma enorme petulância tipicamente humana. 
A Terra está sofrendo nas mãos dos homens, piores dores do que sofreu no tempo dos Juízes, dos Profetas e do Cristo, por conta do volume de suas artimanhas e imensa criatividade para o mal. Mesmo assim, em arrogância, a humanidade de hoje repete a daquele tempo. Novos atores, homens hiper sapiens, porém, os mesmos vícios, a mesma ganância e avareza, os mesmos ódios, a mesma indiferença e falta de empatia, o mesmo fogo estranho oferecido em altares impróprios, a mesma desfaçatez que louva a Deus com a boca mas o coração abriga o ídolo da conveniência, o falso deus do lucro ad infinito do capital. Esses homens não são em nada melhores do que aqueles que já viveram, contudo, o mundo sofre em suas mãos como nunca antes sofreu. Tudo o que antes já foi feito, tornam a fazer, todavia, numa escala sem precedentes, graças às suas excelentes estratégias de disseminar a maldade em rede, em larga escala. 

No seu Apocalipse, João não passa nem perto de sugerir que haverá progresso humano, que os homens vão se salvar e salvar o mundo com seus esforços. É bem o contrário. A humanidade está  enredada no mesmo movimento cíclico de corrupção que seus ancestrais, portanto, as mesmas repreensões e vaticínios endereçados aos antigos do primeiro século, são pra agora. Uma vez que não houve interrupção no movimento de eterno retorno do mesmo sobre as causas e efeitos das mazelas dos homens nem após a inauguração da nova aliança, isso significa que, sem saber, aquele Oráculo do passado escreveu suas visões também para o tempo atual.

Todavia, um detalhe que tanto os Juízes quanto os Profetas e o Cristo fazem decisivo em seus sermões quando expõem a tragédia eminente é o chamado ao arrependimento, é a oportunidade que Deus sempre abre para que haja mudança de mente e a trajetória rumo ao caos total seja revertida. Sendo que toda a desgraça anunciada é consequência do estilo de vida dos homens que faz voltar sobre eles os efeitos de suas más decisões, mudar o jeito de levar a vida é fundamental para interromper o ciclo de repetição. Porém, só é possível interromper esse ciclo se a humanidade tiver humildade de reconhecer que os sermões que foram pregados no passado estão vivos e são para se levar a sério, não só o anúncio da tragédia, mas, sobretudo, sua convocação ao arrependimento, pois, na repetição de comportamentos, os homens de hoje são os mesmos e revivem com mais intensidade os pecados de seus antepassados. 

A questão é que a humanidade não está afim de se reconhecer refletida nesse funesto espelho partido. Portanto, insisto mais uma vez com João em seu Apocalipse, dizendo que mesmo com toda a desgraça que cai e cairá como juízo por causa da insistência na prática do mal, não haverá arrependimento, pelo contrário, os homens vão se deleitar ainda mais na torpeza, vão continuar empenhados no erro:

"Os outros homens, aqueles que não foram mortos por esses flagelos, não se arrependeram das obras das suas mãos, deixando de adorar os demônios e os ídolos de ouro, de prata, de cobre, de pedra e de pau, que nem podem ver, nem ouvir, nem andar; nem ainda se arrependeram dos seus assassínios, nem das suas feitiçarias, nem da sua prostituição, nem dos seus furtos." (Apocalipse 9.20-21)

 E, chegando a conta, quando o céu desabar numa saraivada de pedras, blasfemarão de Deus, por ser sobremodo grande o seu flagelo:

"também desabou do céu sobre os homens grande saraivada, com pedras que pesavam cerca de um talento; e, por causa do flagelo da chuva de pedras, os homens blasfemaram de Deus, porquanto o seu flagelo era sobremodo grande". (Apocalipse 16.21)

Não por acaso, o Oráculo, prisioneiro na ilha de Patmos, recebe esta revelação como a última de uma sequência de sete flagelos, o que vem a seguir são os preparativos finais para o dia do juízo, quando todos estarão postos diante do grande trono branco para serem "julgados, segundo suas obras, conforme o que se achava escrito nos livros", sendo um desses livros o da Vida, e quem "não foi achado inscrito no Livro da Vida, esse foi lançado para dentro do lago de fogo", esta, a segunda morte
O detalhe decisivo dos que sofrerão a segunda morte é que, ao comparecerem diante do grande  trono branco, já terão passado pela primeira morte, tendo determinado nessa existência seu destino eterno na próxima. (Apocalipse 20.11-15)




Alex Carrari


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