Ensaio poético sobre a lucidez: não estou no mundo para querer ser feliz


a felicidade à maneira deste mundo
é um ledo engano dos 
que acham que ela existe
como existem as coisas em suas
suas aparências falsificadas.
me cansei tentando acabar 
com essa crença fraca
na mente dos que 
na companhia um dia andei e cantei,
que não querem saber para não 
ter de se incomodar,
e continuar no sossego, polindo os pés de barro 
de seus ídolos à imagem e semelhança 
de si próprios.
já não ando nem canto mais 
entre os que não querem se incomodar,
a esses falei em tantas noites de domingo 
do alto de um púlpito,
hoje escrevo sem sair da minha casa:
que continuem juntando os farelos das promessas
que caem da mesa dos donos
de seus sonhos de conforto simulados nas câmaras do hedonismo,
que se ocultam sob o pueril disfarce 
de uma quimera plena
em outro céu estranho à esta vida,
que acreditam piamente, é a herança 
reservada aos que passarem 
incólumes e conformados às aflições 
deste mundo fraturado,
sem apresentar seus corpos 
como sacrifício vivo, santo e agradável à Deus.

na lassidão do tempo,
a adega evapora,
o vinho seca,
as utopias caducam,
e eu suspiro meu fracasso emocional
enquanto aqui neste dia cinza 
sou atingido pelo trompete abafado
do Miles Davis,
“Flamenco Sketches”,
música da terra quando tudo é mais além,
e eu choro quieto e só,
mesmo que em raros momentos 
esteja rodeado de tanta gente.

não estou no mundo para ser feliz,
estou para ser lúcido.
lucidez traz tristeza
e uma espécie louca de alegria,
esse paradoxo que o Cristo ensinou e viveu.
alegria por não ser um idiota que ri de tudo,
porque nem tudo na vida tem graça.
tristeza porque consigo ver claramente 
a celebração do direito ao barulho 
do riso de poucos
abafar o som grave do lamento de muitos.

religião que mata,
paixões que enganam,
faca cega no peito,
estupro na sala de bonecas,
nome riscado dos arquivos da vida,
deus caprichoso lançando em tormentos
quem não tem o nome escrito
em seu enorme livro de verdades
manipulado por homens de torpe ganância,
a prostituta desonrada ali,
bem ali por trinta moedas
sob a luz de todos os olhares retos,
o menino aqui, bem aqui,
esperando que alguém pergunte seu nome,
que lhe esmolem um afago na cabeça
enquanto o vidro do carro com adesivo
"Deus, pátria e família"
sobe indiferente acionado por um
santo meritocrata sanitizado que se acha um escolhido.
e lá, no mundo exótico do oriente,
porque embaixo do chão correm 
rios de ouro negro,
o deus do destino manifesto americano,
autoriza seus beatos,
democratas e republicanos, a presentearem bilhões
de dólares abençoados em armas ao exército de seus lacaios sionistas, para com precisão,
mutilarem crianças,
sufoca-las com gás,
mata-las de fome, doenças, bombas,
tiros nas costas, na cabeça, no peito,
violentarem suas mães, assassinarem seus pais,
estraçalharem cães, gatos, pássaros,
assolando toda a criação 
que encontram pelo caminho,
como oferenda sobre o altar da 
democracia neoliberal judeu-cristã,
porque eles odeiam tudo o que é bonito,
toda a liberdade,
odeiam o amor,
mas odeiam mais do que tudo quem resiste
e não se curva diante do único senhor 
que adoram, 
se dinheiro. 

nada disso tem graça,
ninguém pode ser feliz
sabendo disso,
e eu sei,
e se sei,
como posso querer ser feliz?

saber é ver,
e o ver desse saber
é ser abatido pela realidade estrangeira de Camus
sob um céu de inexatas impressões
que fere os olhos e castiga a razão,
eu sei e por isso não me permito
querer ser feliz,
quero saber mais,
ainda que saber me esmague,
ainda que eu verta nesse saber
minha carne e sangue dia e noite.

estou no mundo,
tudo o que sei não vem apenas do mundo,
existe algo mais profundo que vem do alto,
porque Aquele que de lá desceu e para lá voltou
me fala,
me mostra,
e me fala aqui com os pés na terra,
fala daqui para aqui, e para além daqui.
Ele não me permite nem descansar no sono
e me convoca ao silêncio
da névoa que lá fora umedece o ar noturno,
para ouvirmos juntos o choro da terra,
por isso me recuso à tentação de crer
numa flutuação desencarnada
desprendida da dor
que vejo arquejar na passarela
dessa indiferença normatizada
da morte normalizada.

não estou no mundo para querer ser feliz,
como posso querer ser feliz num mundo
onde rastejam tantos 
Netanyahus, Bushs, Bidens, Trumps, Bolsonaros, Macrons...salivando morte com a conivência 
e os aplausos daqueles que dizem amar e
servir o Deus que tanto amou os que
eles desprezam?

Como posso querer ser feliz vendo o massacre das crianças de Gaza
pelas balas e mísseis dos adoradores 
da "nação santa",
arquitetos da Sião dos alicerces de sangue,
e sobre seus pequeninos pedaços triunfar
bandeiras brancas com estrelas azuis? 
estes mesmos adoradores que detestam 
e matariam o Filho de Deus
quantas vezes ele encarnasse como
um palestino nômade
que veio tirar o pecado do mundo
e não tinha onde reclinar sua cabeça.

não acredito em jogo começando do zero,  
é tudo uma continuação
do que aqui se faz aqui não se apaga,
e muitos destes senhores da morte
não pagarão aqui pelo horror que fizeram,
e se o medo mantém muitos
prostrados e obedientes
aos pés dos patrões provisórios deste mundo,
somente o terror das aflições que vejo nos olhos 
daquelas crianças 
é que me derruba com a cara no pó,
por reverência à Divina Providência que virá Naquele Dia, porque sei em quem tenho crido,
meus joelhos só se dobram diante do
único Senhor de tudo o que há
e do que há de ser,
nesta vida passageira e na eterna.

nas madrugadas em que
sou acordado por Ele para ser afetado pelos 
ecos das dores do mundo que ele 
amou sem limites 
fazendo vibrar meu corpo largado ao lado da cama,
sinto o desejo de sentir o que Ele sente,
e quero tanto abraçar os sofridos da terra
como Seu Filho quis,
assim como a galinha faz com seus pintinhos,
mas não consigo,
minhas asas estão quebradas e sangram.


Alex Carrari


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