Temos grande urgência em aprender a morrer

...em outras palavras, Montaigne quis dizer: Aprender a morrer constitui todo o ensino que poderemos alcançar a respeito da vida. A morte maturada, arduamente treinada, efeito de uma experiência existencial corajosa, sinalizada por alguns feitos – grandes ou pequenos, tanto faz, todos se reduzem a um vapor de nada se comparados ao porvir –, requer de nós humildade para nos reconhecermos insignificantes diante da grandeza de um evento tão assombroso e ao mesmo tempo tão redentor. E assim, quem sabe, ao nos retirarmos do mundo sozinhos, exaustos de tantas presenças, o façamos com nobreza e com a mesma mansidão com que nascemos.


Talvez a morte seja outro tipo de nascimento como já versou Saramago.

Temos grande urgência em aprender a morrer lentamente após cada entardecer de cobre admirado com o pasmo essencial e aquela reverência de amolecer as pernas, quando tocados pelo ineditismo de um evento tão corriqueiro percebemos a absoluta indiferença à nós  do milagre da lei da gravidade, da luz gratuita doada por uma gigantesca bola de fogo flutuando sobre o nada, assim como do magnífico palco onde misteriosamente respiramos e interpretamos papéis risíveis exagerando nossa importância, que chamamos de Terra, girando calma sobre si mesma no infinito espaço onde flutuam incontáveis palcos-mundos.

Não digo morrer como quem renuncia à vida ou dela se abdica com devotado desleixo, que seria o contrário de qualquer aprendizado, e não haveria aí lição alguma. Renunciar à vida não traz nenhum aprendizado sobre a morte, que é de um valor tão esplêndido e indescritível que até mesmo Deus passou por ela, sorvendo-a intensamente até o limite de sua eternidade. Perdoem-me a heresia poética, mas acho que Deus teve certa curiosidade em relação à morte, por isso quis experimentá-la no processo de sua encarnação como um de nós. Ele, que antes do silenciar de sua carne aprendeu a morrer todos os dias extasiado com a vida, pôde enfim permitir, sem culpa e sem pecados, abandonado, suspenso entre a terra e o céu, que continuássemos a ser afligidos, mas com esperança, pelo mais absurdo dos medos cultivados, a hora em que a permanência da nossa memória será posta à prova, e então saberemos que o esquecimento não se aloja onde a carne silencia. De acordo com minha educação cristã, a memória ficará preservada Nele de alguma forma que desconhecemos totalmente, até Aquele Dia, quando todos serão chamados à acordar do pó para prestar contas diante Daquele que está assentado no grande trono branco. (Apocalipse 20.11-15)

Aprender a morrer é também ensaiar despedidas.

Despedidas são uma espécie de abertura ao consolo do Espírito em um mundo obcecado pelo hermetismo e segurança, com tantas invenções e prodígios como esse que particularmente arquitetamos no curto espaço entre um inspirar e expirar divino, instante em que vivemos, que designamos como existência

Todas as despedidas são em si a mesma coisa, apenas lhes damos diferentes valores para que a experiência pareça sempre outra e a dor não dê impressão de encher-nos demais o peito. Essa existência não teria o devido sentido caso não fosse a justeza e o rigor de sua curta duração. O prazo de cada vivência é repleto de desconfianças contra todas as aflições e de ansiosa espera por um tempo que parece se distanciar cada vez mais, que seja mais fecundante e adequado à eternidade que em algum lugar do passado perdemos. Uma pulsão sagrada – algo que é peculiar à nós, os que reconhecem por demais o aqui – deita sua arejada sombra sobre tudo o que consideramos digno de que não participe das comuns e inevitáveis partidas, nos impelindo à resistência, alentando-nos a alma no momento em que a eminência e o prenúncio de tantas perdas se achegam ao coração.

Quem o quanto mais reconheceu o aqui e tanto mais se amasiou dos entardeceres, mais terá de acostumar-se, enquanto aqui, às despedidas que ao longo da vida forçosamente fará, até que a última de todas as despedidas, a sua própria, não terá como acompanhar.

A morte, essa ocorrência, a mais colossal de todas as ocorrências não esclarecida, empurra-nos para o mais fundo da vida e exige-nos o cumprimento da mais admirável tarefa; acatar sem hesitação as mais íntimas experiências de perda. Delimitada com meios e medidas, a morte, formidável e ricamente ilustrada, se encarada com seriedade, é uma das muitas partes desse Todo que nos confunde com infinitas transformações necessárias, nos impondo seu ritmo soberano sob a névoa das mudanças, organizadas pela transparente graça que paira sobre tudo como o sacro santo sopro da vida.

A concepção cristã de um além, adornado pelo nosso imaginário com belezas inefáveis e incorruptíveis, é um conforto que demora demais ao coração. Nosso coração é enganoso e ignorante, e nenhum consolo encontra nele abrigo caso seja inalcançável para o instante.

Supondo que pudéssemos dominá-la – como de praxe supomos em relação a quase tudo –, acreditamos que a rigorosa realidade da morte em sua essência mais íntima fosse contrária a nós. Esquivamo-nos – como se pudéssemos –, do dever de admirar a organização da vida e seus fundamentos que Deus nos impôs e que decerto sempre esperou que Dele nos valêssemos nessa trajetória curva vertiginosa que seguimos sem volta, sem contudo, nos deter em parte alguma, e que nela, se aprendessemos a morrer, saberíamos como viver. 
 

Alex Carrari

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